Algum pessimista argumentará que, qualquer que seja o
tratamento que eu dê ao tema anunciado pelo título acima, não passarei
de comentários tautológicos, já que a morte por si mesma é banal, não
necessitando de que se sublinhem essa condição. De fato, como única
verdadeira certeza que temos na vida, a morte é banal, acontece a toda
hora e, mais cedo ou mais tarde, chegará para todos. Mas, embora saiba
não estar dizendo novidades, pois eu mesmo já falei neste assunto várias
vezes e em várias ocasiões, acho que, entre nós, a morte está ficando
banal em demasia.
Nas grandes cidades brasileiras a começar pelas duas
maiores, mata-se praticamente como se tratasse de algo inerente à
existência urbana. Não creio estar apenas reprisando um bordão de velho,
quando digo que a vida humana cada vez tem menos valor - e não só para
bandidos, que assassinam mesmo sem necessidade alguma, mas para nós,
outros, que só faltamos dar de ombros, quando sabemos de uma nova morte
violenta, entre as dezenas que se noticiam todos os dias nos jornais. Em
biologia, sabe-se que a repetição exaustiva de um estímulo acaba por
atenuar fortemente, ou mesmo eliminar, seu efeito. Sem dúvida, isto
acontece conosco. De tanto sabermos de barbaridades, já não mais nos
chocamos.
A morte violenta não nos sitia somente nos noticiários. Ela
está em todas as partes, nas balas perdidas que vêm atingindo tanta
gente no Rio de Janeiro e que são mesmo objeto de fornidas coleções em
alguns bairros, nos jogos eletrônicos que fascinam nossos filhos e netos
e nos enlatados americanos com que somos bombardeados pela televisão.
Desde criança, vemos mortes violentas às dúzias. E, o que é pior, mortes
desacompanhadas de tudo que ela traz na vida real. O personagem toma um
tiro, bate as botas e nada mais acontece. Não há luto, não há
orfandade, não há viuvez, não há nem sequer dor. O assassinato e a morte
são quase iguais a outros atos corriqueiros da vida cotidiana.
Sabemos também que, embora não esteja na lei, a pena de
morte, pública e privadamente decretada, há muito tempo existe no
Brasil. De vez em quando aparece uma reportagem, mostrando como
pistoleiros cobram quantias que não dão nem para um bom jantar, num bom
restaurante, para matar alguém que não conhecem e que nunca hes fez mal.
Encher a cara, pegar o carro e matar um desafeto é a melhor maneira de
cometer homicídio no Brasil. O matador paga fiança, é solto, responde o
processo em liberdade e, se eventualmente for condenado, poderá, caso se
trate de réu primário, cumprir a pena também em liberdade.
A polícia mata ("executa", palavra com que certa imprensa
parece querer nobilitar o assassinato) e não mata somente o bandido, mas
também o cidadão que está por perto. Comerciantes contratam
"justiceiros", que tomam a si o encargo de eliminar quem quer que pareça
uma ameaça. Viajar de ônibus passou a ser uma aventura cotidiana, pois
raro é o dia que um ou mais não são assaltados, com direito a tiroteio.
Hospitais, berçários, asilos de velhos e clínicas matam em níveis
reminiscentes do nazismo. Morre-se de fome nas cidades e no campo, e por
aí vamos.
Enfim, mata-se escandalosamente em toda parte e ficamos nós,
os sobreviventes, como que anestesiados. Para muitos, infelizmente, o
problema só se torna grave quando a vítima lhes é próxima. Enquanto
acontece somente com os outros, não merece muita atenção. Isso não pode
deixar de ser visto como uma gravíssima deformação, de que precisamos
tomar consciência e nos livrarmos a qualquer custo. A morte é o fim
natural da vida, mas não é natural que se alastre dessa forma monstruosa
e que, embotados, abúlicos e acomodados, não façamos nada para mudar a
situação em que tão aviltantemente existimos. Não somos bichos, somos
cidadãos, e se não zelarmos até ferozmente pelos nossos direitos, dentro
em breve não teremos mais direito nenhum, nem mesmo à vida.
João Ubaldo Ribeiro. Manchete, 16/11/96, p. 97.2
O autor trabalha seu texto utilizando vários recursos estilísticos. Com relação à conotação e à denotação, julgue os itens abaixo.I. "Não há luto, não há orfandade, não há viuvez, não há nem sequer dor"II. "Morre-se de fome nas cidades e no campo"III. "Enfim, mata-se escandalosamente em toda parte"IV. "os enlatados americanos com que somos bombardeados"Os vocábulos estão empregados predominantemente em sentido conotativo apenas nos itens
a) I e II.
b) I e III.
c) II e III.
d) II e IV.
e) I, III e IV.